14 de Agosto de 2022
- 2º Grau
Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro
Detalhes da Jurisprudência
Processo
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro
Inteiro Teor
Poder Judiciário da União
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITÓRIOS
Órgão 6ª Turma Cível
Processo N. APELAÇÃO CÍVEL XXXXX-04.2020.8.07.0001
APELANTE (S) CVC BRASIL OPERADORA E AGENCIA DE VIAGENS S.A. e PHOENIX BSB
AGENCIA DE VIAGENS E TURISMO DF EIRELI - EPP
APELADO (S) EDISON FREITAS DE OLIVEIRA
Relator Desembargador ALFEU MACHADO
Acórdão Nº 1346820
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS. PRELIMINAR. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AFASTADA. MÉRITO. PACOTE TURÍSTICO. VIAGEM ÁEREA.
HOSPEDAGEM. TRASLADOS. EVENTOS. CANCELAMENTO. CASO FORTUITO E
FORÇA MAIOR. PANDEMIA. COVID-19. MP Nº 948/2020. PRINCÍPIO DA
IRRETROATIVIDADE DA LEI. RESCISÃO CONTRATUAL E DEVOLUÇÃO INTEGRAL
DA QUANTIA PAGA. MANUTENÇÃO. RECURSO DESPROVIDO.
1. Todos aqueles que participam da cadeia de consumo, auferindo vantagem econômica ou de qualquer outra natureza, por intermediar transações e parcerias, devem responder solidariamente aos prejuízos
causados ( § 2º do artigo 3º; parágrafo único do art. 7º; § 1º do art. 25, todos do CDC).
2. Considerando a responsabilidade solidária da cadeia de fornecedores de produtos e serviços, a
discricionariedade do consumidor no exercício de sua pretensão e o fato de que a legitimação para a
causa deve ser analisada com base nas afirmações feitas na petição inicial (teoria da asserção), cuja
necessidade de um exame mais acurado deve ser realizada como próprio mérito da ação, rejeita-se a
preliminar de ilegitimidade passiva das apelantes, intermediadoras de serviços turísticos.
3. O consumidor adquiriu pacote turístico que englobava serviços de transporte aéreo, hospedagem,
traslados e eventos culturais. Assim, aplica-se as disposições da Medida Provisória nº 948/2020
(convertida na Lei nº 10.046/2020), que dispôs sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de
eventos dos setores de turismo e de cultura em razão da pandemia de covid-19, deixando a aplicação da MP nº 925/2020 para os casos que tratam, exclusivamente, do serviço de aviação civil no Brasil.
4. Se por um lado a MP nº 948/2020 objetiva resguardar a higidez econômica das empresas,
privilegiando a manutenção dos contratos celebrados, com a remarcação dos serviços ou a
disponibilização de crédito, neste contexto de grave crise sanitária imposto pela pandemia de covid-19; por outro, também procura equilibrar a relação de consumo, assegurando alternativas adequadas aos
envolvidos.
5. O Estado, sob o pálio das modernas tendências protetivas do consumidor, observados os princípios e direitos traduzidos na Lei nº 8.078/90, outorgou-lhe amplo espectro de proteção, coibindo costumeiros abusos e criando mecanismos poderosos de prevenção e repressão contra antigos excessos.
6. O consumidor solicitou o cancelamento do serviço turístico após a edição da MP nº 948/2020 e antes da sua conversão em lei.
7. Demonstrado que há previsão normativa de solução diversa da simples remarcação do serviço ou
concessão de crédito e que o consumidor é idoso e manifestou que pretende o reembolso das parcelas pagas, em razão da impossibilidade de realizar a viagem, durante a pandemia de covid-19, a sentença
não merece reparos.
7.1. O apelado possui 85 (oitenta e cinco) anos de idade. Neste caso é desarrazoado obrigá-lo a se
manter vinculado a um contrato que não sabe se poderá gozar do serviço ou que, usufruindo, o coloque em situação de risco à saúde e à vida. É fato notório o de que a pandemia está longe de terminar e não se sabe quando as medidas de isolamento social serão desaconselhadas.
8. O recorrido não pode ser responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de caso fortuito ou de força
maior, nos termos do art. 393 do CC.
9. Os juros de mora são devidos, desde a citação inicial, a teor do estabelecido no art. 405 do CC.
10. Quanto ao requerimento subsidiário das apelantes, que vai ao encontro do requerido pelo apelada
na petição inicial, mantem-se a determinação de que a devolução dos valores pode ser em até 12 (doze) parcelas mensais e iguais, a contar do cancelamento do voo cancelado, por analogia ao disposto no art. 3º da Lei nº 14.034/2020.
11. RECURSO DESPROVIDO.
ACÓRDÃO
Acordam os Senhores Desembargadores do (a) 6ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios, ALFEU MACHADO - Relator, ARQUIBALDO CARNEIRO - 1º Vogal e
VERA ANDRIGHI - 2º Vogal, sob a Presidência do Senhor Desembargador ESDRAS NEVES, em
proferir a seguinte decisão: CONHECIDO. DESPROVIDO. UNANIME., de acordo com a ata do
julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 17 de Junho de 2021
RELATÓRIO
Cuida-se de apelação interposta por CVC BRASIL OPERADORA E AGÊNCIA DE VIAGENS
S.A. – CVC e PHOENIX BSB AGÊNCIA DE VIAGENS E TURISMO DF EIRELI – EPP em
face da sentença de ID XXXXX, prolatada pelo Juízo da 24ª Vara Cível de Brasília, que julgou
procedentes os pedidos de rescisão contratual e de reembolso da quantia paga, acrescida de juros e de
correção monetária pleiteados por EDISON FREITAS DE OLIVEIRA .
O relatório é, em parte, o confeccionado por ocasião da sentença, que a seguir transcrevo:
“Trata-se de ação de rescisão contratual cumulada com indenizatória proposta por EDISON FREITAS DE OLIVEIRA em face de PHOENIX BSB AGÊNCIA DE VIAGENS E TURISMO DF EIRELI –
EPP e CVC BRASIL OPERADORA E AGÊNCIA DE VIAGENS S/A, partes qualificadas nos autos.
Afirma o autor que contratou com as rés serviço de intermediação de turismo para viagem à Europa a
ser realizada em maio de 2020, incluída compra de passagem aérea e hospedagem. Ocorre que em
razão da pandemia global o requerente e sua esposa não puderam viajar e por isso solicitou o
reembolso das quantias pagas e cancelamento das cobranças, mas as requeri[d]as exigiram o
pagamento integral das parcelas para só depois iniciar o reembolso que seria realizado em doze vezes.
Tece arrazoado jurídico e formula pedido de tutela antecipada para que seja suspenso o pagamento das três parcelas vincendas. No mérito requer a rescisão do contrato e a devolução integral das quantias
pagas.
Em decisão de ID XXXXX foi deferida a tutela provisória.
Regularmente citadas as rés ofereceram contestação conjunta (ID XXXXX) na qual arguiram
preliminar de falta de interesse de agir diante da ausência de pretensão resistida. Suscitaram também
preliminar de ilegitimidade passiva já que as responsáveis pelos supostos danos causados ao autor são as companhias aéreas, efetuando ainda o chamamento ao processo da LATAM AIRLINES BRASIL e ALITALIA SOCIETÀ AEREA ITALIANA S.P.A. No mérito afirma que a MP 925/20 estabelece que nos pedidos de cancelamento, o prazo para reembolso pelas companhias aéreas será de 12 (doze)
meses, devendo o consumidor arcar com as respectivas multas contratuais. Alega também que a MP
948/2020 dispõe que o reembolso pode se dar até 31/12/2021.
Réplica em ID XXXXX.
Em decisão de ID XXXXX foi determinado o julgamento antecipado do mérito. (...)”
Os requerimentos autorais foram julgados procedentes para decretar a rescisão dos contratos de
prestação de serviços celebrado entre as partes, assim como para condenar as apelantes, solidariamente, ao pagamento da quantia paga pelo apelado de R$ 17.162,60 (dezessete mil cento e sessenta e dois
reais e sessenta centavos), acrescida de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês a contar da citação e correção monetária a partir de cada pagamento, em até doze parcelas mensais iguais.
As rés foram condenadas, ainda, solidariamente, ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios fixados em 10% (dez por cento) do valor da condenação.
Opostos embargos de declaração pela primeira apelante, estes foram rejeitados (ID XXXXX).
Além disso, arguem preliminar de ilegitimidade passiva da agência viagens CVC, sob o argumento de que, por ser mera intermediadora entre consumidores e efetivos fornecedores de serviços turísticos, não pode ser responsabilizada solidariamente pelo cancelamento do voo realizado por companhia aérea que não integra o polo passivo da demanda.
No mérito, pleiteiam que, no lugar da rescisão contratual e da determinação de reembolso das
prestações pagas pelo apelado, sejam disponibilizados créditos relativos ao valor desembolsado por ele, a fim de que as apelantes promovam a remarcação da viagem cancelada, nos termos da Medida
Provisória nº 948/2020.
Subsidiariamente, para o caso de manutenção da determinação de reembolso do valor pago, requerem, em relação às passagens aéreas, a retenção da multa contratual, uma vez que o pedido de cancelamento partiu do consumidor (apelado), com o pagamento residual feito no prazo de 12 (doze) meses a contar da data do voo cancelado, sem incidência de juros e com correção monetária pelo INPC, conforme Lei nº 14.034/2020.
Por fim, no tocante aos demais serviços de reservas hoteleiras, traslados e eventos turísticos e culturais, chamado de “pacote terrestre”, caso não seja preferencialmente remarcado, pleiteiam que o reembolso seja determinado em 12 (doze) meses, a contar do término do estado de calamidade pública
(31/12/2020), sem a incidência de juros e com correção monetária pelo IPCA, de acordo com a Lei nº 14.046/2020.
Preparo devidamente recolhido (IDs XXXXX-24995512).
Apresentadas contrarrazões (ID XXXXX), o apelado pugna pela rejeição da preliminar de
ilegitimidade passiva aventada, pelo desprovimento do recurso, bem como pela majoração dos
honorários advocatícios arbitrados.
É o relatório.
VOTOS
O Senhor Desembargador ALFEU MACHADO - Relator
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso, eis que tempestivo, cabível, com
preparo regular (IDs XXXXX-24995512) e subscrito por advogado regularmente constituído nos
autos.
Em relação ao pedido de aplicação do duplo efeito, destaca-se que o efeito suspensivo é a regra para o recurso de apelação (art. 1.012, caput, do CPC), o que se aplica ao presente caso, uma vez que não se enquadra em qualquer das hipóteses excepcionais previstas no § 1º do referido dispositivo. Portanto,
nada a prover nesse desiderato.
Dando seguimento à análise da pretensão reformatória, analiso, em primeiro lugar, a preliminar de
ilegitimidade passiva suscitada pelas apelantes.
E, nos termos do art. 7º, parágrafo único, do CDC, todos os integrantes da cadeia de consumo,
auferindo vantagem econômica ou de qualquer outra natureza, ainda que por intermédio de transações e parcerias, devem responder solidariamente aos prejuízos causados (§ 2º do art. 3º; parágrafo único
do art. 7º; § 1º do art. 25, todos do CDC).
Também há que se ressaltar que a legitimidade das partes é aferida initio litis, ou seja, quando aferidas as condições da ação, não significando o reconhecimento da legitimidade automaticamente a
procedência do pedido em relação à parte considerada legítima para a causa.
Analisando os autos, verifica-se que o apelado adquiriu pacote de viagem – o qual incluía a prestação de serviço de transportes aéreos, hospedagens, eventos culturais e traslados – diretamente com a CVC BRASIL OPERADORA E AGÊNCIA DE VIAGENS S.A., por meio da agência franqueada
PHOENIX BSB AGÊNCIA DE VIAGENS E TURISMO DF EIRELI – EPP.
Portanto, em vista de todas essas considerações, é de ser reconhecida a legitimidade passiva das
apelantes (franqueadora e franqueada da agência de viagem CVC) para figurar na presente demanda
de rescisão do contrato com elas pactuado pelo apelado e reembolso da quantia paga.
Sobre o assunto, vale conferir os seguintes julgados:
RESPONSABILIDADE CIVIL. RELAÇÃO DE CONSUMO. COMPRA DE PASSAGENS
AÉREAS. INTERMEDIAÇÃO DE AGÊNCIA DE VIAGENS . CANCELAMENTO DA
RESERVA. INFORMAÇÃO ERRADA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. TEORIA DA
ASSERÇÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA COMPANHIA AÉREA E DA
AGÊNCIA DE VIAGENS . DANOS MORAIS. INEXISTÊNCIA. I - Pela teoria da asserção, a
análise do preenchimento das condições da ação deve ser feita à luz das afirmações contidas na
petição inicial. Se os autores afirmam ter adquirido as passagens aéreas por intermédio da
agência de viagens, tem ela legitimidade passiva para a causa que visa a responsabilização pelo indevido cancelamento das reservas. II - Tratando-se de relação de consumo, há
responsabilidade solidária dos fornecedores, não subsistindo as teses de irresponsabilidade . (...) (Acórdão XXXXX, XXXXX20178070001, Relator: JOSÉ DIVINO, 6ª Turma Cível, data de
julgamento: 29/8/2018, publicado no DJE: 3/9/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada.) – grifos nossos.
APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO. TRANSPORTE AÉREO. AGÊNCIAS DE VIAGEM.
COMPANHIA AÉREA. RELAÇÃO DE CONSUMO. CONFIGURAÇÃO. PRELIMINAR.
ILEGITIMIDADE PASSIVA. CADEIA DE FORNECIMENTO. RESPONSABILIDADE
SOLIDÁRIA . REJEIÇÃO. (...) 1. A análise das condições da ação deve ocorrer in status assertionis, isto é, segundo os fatos alegados pelo autor na inicial. 2. Aplicam-se as regras do Código de Defesa do Consumidor quando identificadas as figuras do consumidor e do fornecedor, nos termos dos arts. 2º e 3º do referido diploma. 3 . Todos os que integram a cadeia de consumo do bem, na qualidade de
fornecedor, possuem responsabilidade solidária por eventuais prejuízos causados ao consumidor (art. 25, § 1º do Código de Defesa do Consumidor ). (Acórdão XXXXX, XXXXX20198070009,
Relator: DIAULAS COSTA RIBEIRO, 8ª Turma Cível, data de julgamento: 27/8/2020, publicado no DJE: 9/9/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada.) – grifo nosso.
Assim, REJEITO A PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA arguida.
Passa-se então à análise do mérito.
Em 14/11/2019, o apelado celebrou com as apeladas contratos de intermediação de serviços de
turismo, relativos a um pacote de viagem para duas pessoas, com destino a alguns locais da Europa. O primeiro local era Barcelona e o último, Paris.
(dez) prestações.
O recorrido solicitou o cancelamento da viagem, diante da grave crise sanitária provocada pela
pandemia de COVID-19, do fechamento de fronteiras, das recomendações de isolamento social, bem como por pertencer ao grupo de risco para o contágio da doença, por possuir 85 (oitenta e cinco) anos de idade.
Consoante demonstrado nos autos, a solicitação do cancelamento foi formalizada no dia 16/4/2020
(ID XXXXX - Pág. 3).
A alternativa oferecida pelas apelantes foi a de disponibilização do crédito correspondente ao valor
integral dos serviços turísticos, para utilização posterior. A proposta não foi aceita pelo apelado, que solicitou o ressarcimento do valor pago.
Conforme relatado, em sede antecipatória, foi determinada a suspensão das cobranças das 3 (três)
parcelas contratuais vincendas (ID XXXXX).
Ao final, o pedido autoral foi julgado procedente para “declarar rescindido os contratos celebrados
entre as partes, bem como condenar todos os réus, solidariamente, a devolverem ao autor a quantia de R$ 17.162,60 (dezessete mil cento e sessenta e dois reais e sessenta centavos), acrescida de juros de mora de 1% ao mês a contar da citação e correção monetária a partir de cada pagamento, em até doze parcelas mensais iguais”.
As apelantes insistem que não tem o dever de restituir a quantia paga, ressaltando que, a teor do
estabelecido na MP nº 925/2020 (convertida na Lei nº 14.034/2020) e na MP nº 948/2020 (convertida na Lei nº 14.046/2020), a medida adequada para reparar o consumidor/apelado é a concessão de
crédito para utilização futura.
Apresentadas as circunstâncias fáticas descritas nos autos, ressalto que, além da legislação civil e
consumerista, aplica-se, no presente caso, as disposições da MP nº 948/2020, que dispôs sobre o
cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e de cultura em razão da
pandemia da COVID-19.
Contrariamente ao postulado pelas apelantes, neste caso, não há falar em diferenciação entre os
serviços de transporte aéreo e os demais (hospedagem, traslados e eventos), para fins de aplicação
distinta da MP nº 925/2020 – que tratou, especificamente, das medidas emergenciais para a aviação
civil brasileira em razão da pandemia da COVID-19.
Isto porque, como as passagens aéreas faziam parte do pacote de serviços turísticos oferecidos pela
recorrente, deve-se analisar os contratos celebrados de maneira conjunta e, todos, à luz da MP nº
948/2020, publicada em 8/4/2020.
A propósito, a MP nº 948/2020 estava vigente na data do ajuizamento da ação (28/6/2020), assim
como no momento do pedido de cancelamento do serviço (16/4/2020 – ID XXXXX - Pág. 3).
Lado outro, a aprovação do projeto de lei de conversão que alterou o texto original da medida
provisória, resultante na Lei nº 14.046/2020, se deu posteriormente, em 24/8/2020.
Assim, a parte da medida provisória mantida tem validade desde a edição, enquanto os novos
dispositivos têm aplicabilidade somente a partir da vigência da lei de conversão. De acordo com o
princípio da irretroatividade das leis, não se admite que os efeitos da inovação legislativa retroajam ao tempo da edição da medida provisória.
Desse modo, no que importa ao deslinde do feito, no caso de cancelamento de serviços culturais e
turísticos, aplica-se o inciso III do art. 2º da MP nº 948/2020, que tinha a seguinte redação:
espetáculos, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os
valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:
I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados;
II - a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e
eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou
III - outro acordo a ser formalizado com o consumidor .
A previsão de celebração de acordo entre fornecedor e consumidor foi suprimida com o advento da
Lei nº 14.046/2020, contudo, consoante acima argumentado, a regra incidente no presente caso (MP
nº 948/2020) prevê a possibilidade de reparação do consumidor por meio diverso da simples
remarcação do serviço ou disponibilização de crédito.
A solução demandada não é simples.
Se por um lado a MP nº 948/2020 objetiva resguardar a higidez econômica das empresas,
privilegiando a manutenção dos contratos celebrados, com a remarcação dos serviços ou a
disponibilização de crédito, neste contexto de grave crise sanitária imposto pela pandemia de
COVID-19; por outro, também procura equilibrar a relação de consumo, assegurando alternativas
adequadas aos envolvidos.
Além disso, não se pode esquecer que a relação entre as partes permanece regida pelas normas civis e consumeristas.
O artigo 473 do Código Civil - CC admite a resilição como ato unilateral da parte contratante que, por razões particulares, manifesta interesse em extinguir o vínculo contratual.
A possibilidade de resilição unilateral do contrato também é prevista no art. 51, incisos IX e XI, do
CDC – Lei nº 8.078/90 que considera nula de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais
relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que:
(...)
II – subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste
código;
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade;
IX – deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, obrigando o consumidor;
XI – autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja
conferido ao consumidor;
XV – estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor.
O Estado, sob o pálio das modernas tendências protetivas do consumidor, observados os princípios e direitos traduzidos na Lei nº 8.078/90, outorgou-lhe amplo espectro de proteção, coibindo costumeiros abusos e criando mecanismos poderosos de prevenção e repressão contra antigos excessos.
Dentre as medidas protetivas ao consumidor, destaca-se a atenuação do Princípio da Força Obrigatória do Contrato (“pacta sunt servanda”), adotando-se a Teoria da Imprevisão (“rebus sic standibus”) ao
permitir a modificação das cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais e a revisão das que forem excessivamente onerosas; a prática do dirigismo contratual para regulamentar condutas e
sancionar cláusulas abusivas, bem como pelo controle concreto de cláusula prejudicial ao consumidor
(art. 51, § 4º, do CDC), privilegiando-lhe a interpretação mais favorável (art. 47 do CDC). Desse
modo, não é mais intangível a força do “pacta sunt servanda”.
Assim, conquanto não se despreze a finalidade de atenuar os danos causados ao desenvolvimento da
atividade empresarial ligada aoturismo da legislação comentada, a análise aprofundada do presente
caso revela ser possível a resilição unilateral docontrato, independente do pagamento de multa e
mediante reembolso integral do valor pago pelo consumidor.
O art. 2º, III, da MP nº 948/2020 disciplinou sobre a possibilidade de acordo entre as partes, na
hipótese de cancelamento de serviços e eventos, entretanto, conforme argumentado pelo Juízo da 24ª Vara Cível de Brasília, as apelantes:
(...) não apresentam qualquer argumento razoável para manter um contrato de transporte internacional durante uma pandemia global, sendo o autor integrante do grupo de risco (idoso) e diante do
fechamento de várias fronteiras internacionais. O caso é de rescisão contratual por caso fortuito ou
força maior.
O apelado possui 85 (oitenta e cinco) anos de idade e, neste caso, é desarrazoado compeli-lo a aceitar a remarcação ou a disponibilização de crédito para utilização futura e incerta. É fato notório o de que a situação pandêmica está longe de terminar.
Passados mais de um ano da data prevista para viagem, apesar de iniciada a vacinação contra a
COVID-19, ainda não se tem previsão de quando as medidas de isolamento social serão
desaconselhadas. Frise-se: o apelado integra grupo de risco para desenvolver a forma grave da doença, que já matou mais de três milhões de pessoas no mundo.
Compelir o apelado a se manter vinculado a um contrato que não sabe se poderá gozar do serviço ou
que, usufruindo, o coloque em situação de risco, ofende, não só o direito à defesa da relação de
consumo previsto constitucionalmente, mas também o direito à saúde e à vida, garantidos pela
A propósito, colaciona-se julgado da Turma Recursal:
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. CONSUMIDOR. CRUZEIRO TURÍSTICO NO EXTERIOR.
CANCELAMENTO. PANDEMIA. PEDIDO EFETUADO ANTES DA EDIÇÃO DA MP 948/2020 E DA LEI 14.046/2020. CONSUMIDOR IDOSO E COM CÂNCER. GRUPO DE RISCO. DIREITO À SAÚDE E VIDA ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. QUADRO CLÍNICO
QUE IMPOSSIBILITA A UTILIZAÇÃO DE OUTRAS MEDIDAS DE COMPENSAÇÃO DO
CONSUMIDOR. RESTITUIÇÃO INTEGRAL DO VALOR PAGO. RECURSO CONHECIDO E
NÃO PROVIDO. (...) VIII. Apesar da parte ré suscitar que o escopo principal das legislações editadas para as relações de turismo em face da pandemia fosse assegurar a preservação da atividade
empresarial, deve-se ponderar que as normas também buscam equilibrar a relação de consumo,
assegurando alternativas adequadas às partes envolvidas. IX. Assim, destaca-se que a parte autora é
pessoa idosa, com diagnóstico de câncer no intestino (ID XXXXX, págs. 3-5), ressaltando a sua
preocupação em realizar a viagem diante da pandemia, uma vez que faz parte de grupo de risco. Desse modo, razão assiste à sentença recorrida, uma vez que conceder a utilização do crédito ao
consumidor que faz parte do grupo de risco coloca em risco a sua integridade . Isso porque a parte autora, como única alternativa para não perder os valores pagos, seria "obrigada" a realizar o cruzeiro turístico, colocando sua vida em risco, uma vez que as medidas preventivas e de segurança existentes não são suficientes para afastar integralmente os perigos da doença. X. Odireitoàsaúdee à vida
constituem bens por excelência, garantidos pela Constituição Federal. Desse modo, a condição
de saúde da parte autora, com a necessidade de resguardar o seu direito à vida, caracteriza
elemento que impossibilita a utilização pela parte ré das demais opções, como a remarcação da reserva ou a disponibilização de crédito para compra de nova reserva, o que caracteriza o dever de restituir o valor pago pelo consumidor, na sua integralidade, conforme fixado na sentença .
XI. Recurso conhecido e não provido. Sentença mantida. Custas recolhidas. Condeno a parte
recorrente vencida ao pagamento de honorários advocatícios que fixo em 10% sobre o valor da
condenação. XII. A súmula de julgamento servirá de acórdão, consoante disposto no artigo 46 da Lei nº 9.099/95. (Acórdão XXXXX, XXXXX20208070020, Relator: ALMIR ANDRADE DE
FREITAS, Segunda Turma Recursal, data de julgamento: 22/3/2021, publicado no DJE: 5/4/2021.
Pág.: Sem Página Cadastrada.) – grifos nossos.
Desse modo, acertada a declaração de rescisão contratual e condenação das apelantes na restituição
integral da quantia paga pelo pacote de viagem adquirido, no valor de R$ 17.162,60 (dezessete mil
cento e sessenta e dois reais e sessenta centavos), acrescido de juros de mora e de correção monetária.
Ademais, não é cabível a aplicação de multa ao apelado, pela rescisão contratual, uma vez que o
contexto da pandemia que ensejou os pedidos de cancelamento do serviço turístico e de devolução da quantia paga configura caso fortuito ou força maior.
O recorrido não pode ser responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de caso fortuito ou de força
maior, nos termos do art. 393 do CC.
Os juros de mora são devidos, desde a citação inicial, a teor do estabelecido no art. 405 do CC.
Conforme requerimento subsidiário das apelantes, que vai ao encontro do requerido pelo apelado, na petição inicial, mantenho a determinação de que a devolução dos valores pode ser em até 12 (doze)
parcelas mensais e iguais, a contar do cancelamento do voo cancelado, por analogia ao disposto no art. 3º da Lei nº 14.034/2020.
Diante do exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso de apelação.
Fixo os honorários advocatícios recursais, na forma do art. 85, § 11, do CPC, majorando de 10% (dez por cento) para 12% (doze por cento) sobre o valor da condenação.
É como voto.
O Senhor Desembargador ARQUIBALDO CARNEIRO - 1º Vogal
Com o relator
A Senhora Desembargadora VERA ANDRIGHI - 2º Vogal
Com o relator
DECISÃO
CONHECIDO. DESPROVIDO. UNANIME.