Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro
- 2º Grau
Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro
Inteiro Teor
Poder Judiciário da União
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS
TERRITÓRIOS
Órgão 3ª Turma Criminal
Processo N. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO 0704872-86.2021.8.07.0009
RECORRENTE (S) VINICIUS FERNANDO SILVA CAMARGO
RECORRIDO (S) MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS
e ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO
Relator Desembargador WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR
Acórdão Nº 1363424
EMENTA
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO.
PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO. MOTIVO TORPE. MEIO CRUEL.
FEMINICÍDIO. COMPANHEIRA. CONFLITO DE INTERESSE RECURSAL. ACUSADO
NÃO RECORRE. DEFESA APRESENTA RAZÕES PELA REFORMA DE SENTENÇA DE
PRONÚNCIA. PRELIMINAR REJEITADA. CONVENCIMENTO DA PRESENÇA DA
MATERIALIDADE E DE INDÍCIOS DE AUTORIA. QUALIFICADORAS MANTIDAS.
APRECIAÇÃO PELO CONSELHO DE SENTENÇA. RECURSO CONHECIDO E
DESPROVIDO.
1. Ocorrendo divergência entre o acusado e a defesa quanto à interposição de recurso em sentido
estrito, deve prevalecer a vontade de quem pretende recorrer, como forma de se privilegiar as garantias do duplo grau de jurisdição e da ampla defesa. Assim, afasta-se a preliminar para se conhecer do
recurso do acusado.
2. Na fase de pronúncia, em que vigora o princípio in dubio pro societate, o juiz pronunciará
fundamentadamenteo acusado quando convencido da materialidade dos fatos e da existência de
indícios suficientes de autoria.
3. Presentes indícios de que o crime foi motivado por sentimento de posse do acusado em relação à sua companheira, a qualificadora do motivo torpe não se mostra desarrazoada e não pode ser excluída da
apreciação pelo Tribunal do Júri.
4. Para a incidência da qualificadora do feminicídio é desnecessário indagar a motivação do agente
para a prática do delito, bastando que o homicídio tenha sido praticado contra a mulher, em contexto de violência doméstica e familiar, nos termos do art. 5º da Lei 11.340/2006.
por constrição cervical (estrangulamento), praticada com a utilização de instrumento flexível.
6. As qualificadoras do homicídio, em sede de decisão de pronúncia, só podem ser afastadas em caso de manifesta improcedência ou descabimento.
7. Recurso conhecido e desprovido.
ACÓRDÃO
Acordam os Senhores Desembargadores do (a) 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios, WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR - Relator, DEMÉTRIUS GOMES
CAVALCANTI - 1º Vogal e NILSONI DE FREITAS CUSTODIO - 2º Vogal, sob a Presidência da
Senhora Desembargadora NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, em proferir a seguinte decisão:
CONHECIDO. IMPROVIDO. UNÂNIME., de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 19 de Agosto de 2021
Desembargador WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR
Relator
RELATÓRIO
Trata-se de ação penal pública incondicionada ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS em desfavor de VINÍCIUS FERNANDO SILVA CAMARGO,
devidamente qualificado nos autos, dando-o como incurso no art. 121, § 2º, incs. I, III e VI, e § 2º-A, inc. I, do Código Penal, nas circunstâncias do art. 5º, inc. III, da Lei 11.3040/2006. O Ministério
Público requereu, ainda, a fixação de valor indenizatório mínimo em face dos danos causados, nos
termos do art. 387, inc. IV, do Código de Processo Penal
A denúncia (ID 26663448 - Pág. 1-2), recebida em 12/04/2019 (ID 26663453 - Pág. 1-2) pelo juízo de 1º grau, narra, in verbis:
No dia 26 de março de 2021 (sexta-feira), entre 21h e 23h, na QR 301, Conjunto 01, Lote 04,
Condomínio Viver Melhor, Bloco A, Apartamento 407, Samambaia/DF, VINÍCIUS FERNANDO
SILVA CAMARGO , de forma livre e consciente, com vontade de matar, estrangulou a vítima Evelyne Ishiyama Ogawa, causando-lhe as lesões descritas no Laudo de Exame de Corpo de Delito nº
10495/21, que foram a causa de sua morte.
O delito foi praticado com meio cruel, consistente na asfixia por constrição cervical
(estrangulamento), praticada com a utilização de instrumento flexível.
O crime foi cometido contra mulher por razões da condição de sexo feminino , pois envolveu
violência doméstica e familiar, na medida em que a vítima e o denunciado mantinham relação íntima de afeto.
Denunciado e vítima mantinham relacionamento amoroso há aproximadamente três anos e
coabitavam no mesmo imóvel há alguns meses.
Dias antes do crime, a vítima havia proibido a entrada do denunciado no apartamento por ela
alugado, mas, diante do inconformismo de VINÍCIUS, acabou cedendo e permitindo o retorno dele.
Na noite dos fatos, ao retornarem da casa de amigos, VINÍCIUS e Evelyne iniciaram uma discussão e, na residência, o denunciado valeu-se de um cabo de extensão elétrica que estava no imóvel para
estrangular a vítima, asfixiando-a até a morte. (Grifos no original).
A genitora da vítima, Lauridete Ishiyama Ogawa da Silva, foi admitida como assistente de acusação,
nos termos da decisão de ID 26663478 - Pág. 1.
Após regular instrução, o MM. Juiz do Tribunal do Júri de Samambaia /DF pronunciou o acusado
VINÍCIUS FERNANDO SILVA CAMARGO como incurso no art. 121, § 2º, incs. I, III e VI, e § 2º-A, inc. I, do Código Penal, nas circunstâncias do art. 5º, inc. III, da Lei 11.340/2006, para ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri (ID 26663658 - Pág. 1-15).
Intimado pessoalmente, VINÍCIUS não manifestou o desejo de recorrer da sentença de pronúncia (ID 26663668 - Pág. 1).
A defesa de VINÍCIUS interpõe recurso em sentido estrito (ID 26663665 - Pág. 1), com base no art.
581, inc. IV, do Código de Processo Penal.
Nas razões recursais (ID 26663665 - Pág. 2-8), a defesa requer a exclusão da qualificadora do motivo torpe e o decote da qualificadora do feminicídio.
Argumenta que o relacionamento de Evelyne e VINÍCIUS sempre foi bom e harmonioso e não havia
sentimento egoístico ou de posse de VINÍCIUS em relação à vítima.
Alega que a convivência de Evelyne e VINÍCIUS era tranquila e que ninguém percebeu qualquer tipo de mudança no comportamento dela, acrescentando que a própria família da vítima falou que a vítima tinha um comportamento normal e que ela era alegre e brincalhona.
Aduz que ninguém trouxe relatos de que o acusado coagia ou nutria sentimento egoístico e de posse em relação a vítima, afirmando que, ao contrário, há nos autos elementos de que o acusado, dias antes de
ocorrerem os fatos, queria o término do relacionamento, o que afasta totalmente a motivação do crime, ensejando, consequentemente, a exclusão da qualificadora do motivo torpe.
Aponta que, em relação à qualificadora do feminicídio, os fatos se deram em razão de a vítima tentar
atingir o acusado com uma faca.
Afirma que os policiais que foram ouvidos na instrução (agente Wander e o delegado Kleiler) falaram que visualizaram uma faca no local que o acusado teria indicado na delegacia, sendo que eles
mencionaram que o acusado relatou, na delegacia, que a vítima teria partido para cima dele com essa
faca.
momento ficou comprovado que o delito teria se baseado na condição de gênero.
Pugna, por fim, pelo conhecimento e pelo provimento do recurso.
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, em 1º grau, apresenta contrarrazões, pugnando pelo não conhecimento do recurso, em virtude da preclusão lógica, e, no mérito, pelo seu
desprovimento (ID 26663669 - Pág. 1-10).
A assistente de acusação apresenta contrarrazões, pugnando pelo não conhecimento do recurso e, no
mérito, pelo seu desprovimento (ID 26663675 - Pág. 1-11).
Em juízo de retratação, o MM. Juiz a quo manteve a decisão proferida por seus próprios fundamentos (ID 26663676 - Pág. 1).
A 6ª Procuradoria de Justiça, por intermédio da Promotora de Justiça em Substituição, oficia pelo
conhecimento e pelo desprovimento do recurso (ID 26885009 - Pág. 1-8).
É o relatório.
VOTOS
O Senhor Desembargador WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR - Relator
DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO
O Ministério Público pugna pelo não conhecimento do recurso em virtude da preclusão lógica. Alega que a defesa, quando intimada, não interpôs recurso, requerendo apenas o prosseguimento do feito.
Por outro lado, afirma que o acusado, intimado da decisão, manifestou expressamente o seu desejo de não recorrer. Assevera que houve renúncia ao direito de recorrer, seja pela defesa, seja pelo próprio
acusado, configurando a preclusão lógica, porquanto a posterior interposição do recurso pela defesa é conduta incompatível com a renúncia ao direito de recorrer outrora praticado.
Do exame dos autos, verifica-se que o acusado foi intimado pessoalmente da decisao, em 08/06/2021 (ID 26663668 - Pág. 1), ocasião em que não manifestou desejo de recorrer.
Constata-se que a defesa teve vista dos autos em 04/06/2021 (ID 26663661 - Pág. 1), requerendo,
apenas, o prosseguimento do feito.
A defesa, no dia 08/06/2021, mesma data em que o acusado foi intimado, interpôs recurso em sentido estrito (ID 26663665 - Pág. 1), bem como apresentou as razões recursais (ID 26663665 - Pág. 2-8),
quando não havia ultrapassado o prazo recursal de 5 (cinco) dias previsto no art. 586, caput, do
Código de Processo Penal. Tempestivo, portanto.
Quanto à alegação de ocorrência de preclusão lógica, é cediço que, ocorrendo divergência entre as
vontades do acusado e da defesa quanto à interposição de recurso, deve prevalecer a vontade de quem pretende recorrer, como forma de se privilegiarem as garantias do duplo grau de jurisdição e da ampla defesa. Em situação análogas, decidiu este Tribunal de Justiça:
APRESENTA RAZÕES PELA MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. PRELIMINAR DE NÃO
CONHECIMENTO. REJEITADA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ROUBO. EMPREGO DE ARMA BRANCA (FACA). INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º DA LEI Nº 16.654/2018.
DECLARAÇÃO INCIDENTAL. DOSIMETRIA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. EMPREGO DE
FACA. AFASTAMENTO. APLICAÇÃO NA TERCEIRA FASE. REGIME SEMIABERTO. I -Ocorrendo divergência entre o réu e a Defesa quanto à interposição de recurso de apelação de
sentença penal condenatória, deve prevalecer a vontade de quem pretende recorrer, como forma de se privilegiar as garantias do duplo grau de jurisdição e da ampla defesa. Assim, afasta-se a
preliminar para se conhecer do recurso do réu, no amplo efeito . (...) (Acórdão 1259953,
00022906520188070008, Relator: NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 25/6/2020, publicado no PJe: 3/7/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada) (Grifo nosso)
APELAÇÃO CRIMINAL. ADMISSIBILIDADE. ROUBO. DESCLASSIFICAÇÃO. BEM RETIRADO
DA MÃO DA VÍTIMA SEM EMPREGO DE VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA PESSOA. FURTO POR
ARREBATAMENTO. RECURSO PROVIDO. 1. A renúncia ao direito de apelar pelo réu não impede o conhecimento da apelação interposta pelo seu Defensor, porque tem mais condições de avaliar a conveniência quanto à interposição do recurso, bem como porque a divergência deve ser
solucionada privilegiando-se o interesse na reforma da sentença penal em benefício do acusado,
em atenção aos princípios do duplo grau de jurisdição, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa . (...) (Acórdão 992438, 20150710247975APR, Relator: SILVANIO BARBOSA
DOS SANTOS, Revisor: JAIR SOARES, 2ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 2/2/2017,
publicado no DJE: 13/2/2017. Pág.: 174/205) (Grifo nosso)
Não há falar, portanto, em preclusão lógica.
Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso.
DA MATERIALIDADE E DOS INDÍCIOS DE AUTORIA
De início, vale ressaltar que a decisão de pronúncia configura juízo de admissibilidade da acusação,
diante do convencimento do juiz da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de
autoria. Dispensa a certeza jurídica necessária para uma condenação, prevalecendo, nessa fase, o in
dubio pro societate em detrimento do in dubio pro reo.
Não houve insurgência quanto à materialidade e aos indícios de autoria, mas, mesmo assim,
constata-se que ficaram demonstrados nos autos.
A materialidade do crime ficou comprovada pela portaria de instauração do inquérito policial (ID
26663362 - Pág. 1-2), pela ocorrência policial nº 1.808/2021-2 (ID 26663386 - Pág. 1-8), pelo
relatório de local de crime (ID 26663384 - Pág. 1-2), pelo laudo de perícia necropapiloscópica nº
393/2021 (ID 26663385 - Pág. 1-5), pelo laudo de exame de corpo de delito nº 10495/21 – cadavérico (ID 26663449 - Pág. 1-15), pelo laudo de perícia criminal nº 4.532/2021 – exame de informática (ID 26663444 - Pág. 1-29; 26663446 - Pág. 1-11; 26663447 - Pág. 1-18), pelo relatório final (26663389 -Pág. 1-6), bem como pelos depoimentos colhidos na fase extra e judicial, sob o crivo da ampla defesa e do contraditório, inclusive com a confissão do acusado (ID 26663643)
DAS QUALIFICADORAS
A defesa requer a exclusão da qualificadora do motivo torpe e o decote da qualificadora do
feminicídio.
Em relação à qualificadora do motivo torpe, verifica-se o caráter dominador do acusado durante o
relacionamento amoroso com a vítima, o que revela o seu sentimento egoístico de posse, tal como
narrado na denúncia.
Colhe-se dos depoimentos judiciais de Lauridete Ishiyama Ogawa da Silva, Aline Ishiyama Ogawa,
Márcio Santos Cipriano, Najila Cristina Alexandre da Cruz e Bruno Ribeiro de Souza que VINÍCIUS menosprezava a vítima em virtude da diferença de idade entre ambos, tolhia a vítima de seus hobbies, como jogar vôlei e, ainda, ameaçava de matar a vítima e de se matar, caso ela decidisse terminar a
relação.
Poucos dias antes do crime, a vítima, finalmente decidida a não se submeter às pressões psicológicas e ao comportamento dominador do acusado, resolveu bloquear a entrada de VINÍCIUS no imóvel do
casal, fazendo com que o acusado, frustrado em seu sentimento de posse, resolvesse matá-la.
Nesse sentido, observam-se os seguintes trechos dos depoimentos judiciais das testemunhas acima
mencionadas:
(...) i) Evelyne relatou que havia proibido a entrada de VINÍCIUS no condomínio, porque VINÍCIUS havia saído numa quinta-feira, após ela sair para o trabalho, e somente retornou na segunda-feira;
(...) l) Evelyne não estava conformada com este relacionamento, 10 (dez) dias antes do fato, e lhe
relatou que não estava satisfeita com o relacionamento, que estava trabalhando sozinha e arcando
com todas as despesas de casa sozinha, inclusive despesas pessoais de VINÍCIUS, a intenção dela era se separar dele, que ele saísse do apartamento; m) VINÍCIUS não ajudava em casa; n) inclusive,
arrumou todas as coisas dele; (...) t) Evelyne gostava muito de jogar vôlei, após iniciar o
relacionamento com VINÍCIUS diminuiu muito a prática deste esporte; (...) (Depoimento de
Lauridete Ishiyama Ogawa da Silva; ID 26663620 a 26663622).
(...) Evelyne após o início do relacionamento com VINÍCIUS, ele não gostava que ela fosse para os
jogos de vôlei, que ela gostava muito de ir. (...) (Depoimento de Aline Ishiyama Ogawa; ID
26663623).
(...) d) Evelyne relatou que VINÍCIUS havia saído de casa e que ela descobriu que ele estava numa
festa com amigos e que não havia voltado para casa, que ela achava que ele estava com vergonha do que tinha feito; e) a irmã de VINÍCIUS ligou para Evelyne, destratando-a; f) sempre que falava de
VINÍCIUS, Evelyne falava com carinho, no sentido de tentar relatar o relacionamento; g) quando
VINÍCIUS apareceu em casa, ele tentou culpar Evelyne sobre o sumiço dele; h) Evelyne relatou que
VINÍCIUS dizia que a mataria, que iria lhe bater, mas ela não acreditava que ele faria isso; (...) m)
Evelyne lhe relatou que bloqueou a entrada de VINÍCIUS no condomínio, mas foi uma “vingancinha” de casal, tanto que depois ela desbloqueou a entrada dele no prédio; n) Evelyne relatou que se
VINÍCIUS não melhorasse, embarcasse nos sonhos dela, porque ela era muito sonhadora, ela dizia
que iria terminar a relação, dias antes do feminicídio. (...) (Depoimento de Márcio Santos Cipriano;
ID 26663617 a 26663619).
(...) g) VINÍCIUS não colaborava, a vítima havia lhe confidenciado que queria se separar, porque
estava sendo o “homem da casa”, mas VINÍCIUS sempre conseguia reverter a situação; h) sugeriu
Evelyne proibir a entrada de VINÍCIUS no prédio, isso porque, Evelyne havia relatado à declarante que estava desconfiada de que VINÍCIUS tinha um relacionamento extraconjugal; i) Evelyne havia
lhe encaminhado uma mensagem com fotos de VINÍCIUS na farra, enquanto Evelyne trabalhava; j)
VINÍCIUS já apresentava comportamento agressivo com Evelyne, e também, o réu havia dito que
cometeria suicídio caso a vítima separasse dele; k) via hematomas em Evelyne e a questionava, mas esta não confirmava agressões físicas; l) visualizou vários comportamentos controladores de
VINÍCIUS sobre Evelyne; (...) o) na presença da declarante, ouviu por várias vezes, VINÍCIUS
chamar Evelyne de “velha, acabada”, que ela tinha sorte dele estar com ela, que na idade dela, ela
não encontraria mais ninguém; p) Evelyne já tinha problema com sua autoestima, VINÍCIUS a
humilhava e denegria a autoestima dela ainda mais; (...) t) VINÍCIUS manipulava Evelyne
psicologicamente; (...) x) certa vez, após um jogo de vôlei, presenciou VINÍCIUS segurando o braço de Evelyne, ela tentava se desvencilhar, mas foi embora no meio do jogo levada por VINÍCIUS ; (...) ac) Evelyne relatou que VINÍCIUS dizia que iria se matar caso Evelyne terminasse com ele o
relacionamento.(Depoimento de Najila Cristina Alexandre da Cruz; ID 26663614 a 26663616).
(...) c) Evelyne chegou a relatar para um funcionário do condomínio, Rafael Cavalcante, agente de
portaria noturno, de que iria voltar para a casa dos pais ou iria para a casa de uma amiga, porque
estava com medo de VINÍCIUS ; d) este fato foi relatado no mesmo dia que ela fez o bloqueio de
VINÍCIUS na portaria; e) o bloqueio é feito na portaria do prédio, sem maiores formalidades; f)
soube que VINÍCIUS ficou chateado por ter sido bloqueado, após, Evelyne autorizou o desbloqueio
(...) (Depoimento de Bruno Ribeiro de Souza; ID 26663627 a 26663628)
Tudo leva a crer que o acusado matou a vítima em nítido sentimento de posse que imaginava ter sobre sua companheira, sentindo-se frustrado, nesse contexto, quando a mulher chegou a proibir na portaria do prédio o ingresso do acusado. Descabe, portanto, a queixa defensiva no sentido de que as
testemunhas demonstraram que havia entre vítima e acusado um relacionamento harmonioso e trivial.
Além desses relatos, há nos autos mensagens do aplicativo Telegram em que a própria vítima revela o comportamento abusivo do acusado (ID 26663444 - Pág. 4; 26663444 - Pág. 13).
A vítima era tratada como objeto de dominação do acusado, o qual buscava tolher a sua liberdade,
mediante abusos psicológicos e chantagens emocionais, a fim de mantê-la submissa dentro do
relacionamento tipicamente abusivo.
Nesse contexto, VINÍCIUS matou a vítima, quando viu seu domínio ruir, diante das atitudes da vítima que pretendia voltar a ter liberdade.
Tecidas essas considerações, não merece prosperar a tese defensiva, porquanto o motivo do crime está delineado nos autos. O motivo torpe se faz presente, uma vez que o acusado teria agido impelido pelo sentimento egoístico de posse em relação à vítima.
A qualificadora objetiva do feminicídio também está configurada no caso concreto, pois há provas de que a vítima e o acusado mantinham relação íntima de afeto e o homicídio foi praticado nesse
contexto.
Decidiu este Tribunal de Justiça, inclusive esta Relatoria, in verbis:
do feminicídio, de ordem objetiva, incide sempre que o crime seja cometido em razões da condição de sexo feminino, envolvendo violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher. E não afasta a qualificadora do motivo fútil, de ordem subjetiva, sobretudo porque elas se caracterizam por circunstâncias diversas. 2 - No juízo de pronúncia, somente as qualificadoras que
se mostrem totalmente dissociadas do contexto probatório são passíveis de exclusão, pena de se
usurpar a competência atribuída ao Tribunal do Júri. 3 - Recurso em sentido estrito não provido.
(Acórdão 1243583, 07010225520208070010, Relator: JAIR SOARES, 2ª Turma Criminal, data de
julgamento: 16/4/2020, publicado no PJe: 24/4/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada)
DIREITO PROCESSUAL PENAL. RECURSOS EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA.
PRELIMINAR. APRESENTAÇÃO DE RAZÕES RECURSAIS. INTEMPESTIVIDADE. MERA
IRREGULARIDADE. HOMICÍDIO TENTADO. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DE MOTIVO
FÚTIL. INCOMPATIBILIDADE COM O FEMINICÍDIO. NÃO OCORRÊNCIA. ÍNDOLE OBJETIVA. INCLUSÃO NA DECISÃO DE PRONÚNCIA. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO. AUSÊNCIA DE ANIMUS NECANDI. INVIÁVEL. DESCLASSIFICAÇÃO. LESÕES CORPORAIS. INCABÍVEL. CRIME
CONEXO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO.
INVIABILIDADE. RECURSO DA ACUSAÇÃO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
RECURSO DA DEFESA CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (...) 4. Para a incidência da qualificadora do feminicídio ( CP, art. 121, § 2º, VI), de índole objetiva, é desnecessário indagar a motivação do
agente para a prática do delito, bastando que o homicídio tenha sido praticado contra a mulher, em contexto de violência doméstica e familiar, nos termos do artigo 5º da Lei 11.340/2006. (...) (Acórdão 982116, 20150310228479RSE, Relator: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, 3ª TURMA
CRIMINAL, data de julgamento: 17/11/2016, publicado no DJE: 25/11/2016. Pág.: 98/107)
Ressalte-se que o aprofundamento da questão sobre a motivação de gênero deverá ocorrer perante os jurados, que deverão se manifestar a respeito de sua existência ou não.
Outrossim, a alegação de VINÍCIUS de que teria matado a vítima após uma reação dela encontra-se
isolada nos autos e não justifica a prática do crime doloso contra a vida, não tendo o condão de
decotar a qualificadora em análise.
Assim, inconsistente a tese de que o recorrente, na ocasião, buscou se defender de um ataque da
vítima realizado com uma faca, sendo que sequer foi sustentada a absolvição sumária por legítima
defesa no recurso, até mesmo porque não há qualquer elemento a amparar referida tese.
Acerca do ponto, basta compulsar as telas do aplicativo de mensagens Telegram trazidas pela
acusação, as quais evidenciam a relação amorosa tumultuada vivenciada pela vítima, bem como seu
temor de ser assassinada pelo acusado em circunstâncias indicativas de violência doméstica e familiar, como efetivamente ocorreu.
Conforme jurisprudência dominante, a torpeza é qualificadora de natureza subjetiva, enquanto o
feminicídio ostenta natureza objetiva, sendo possível a coexistência entre ambas, sem que isso
implique dupla punição pela mesma circunstância.
Orienta este Tribunal de Justiça, in verbis:
qualificadora do feminicídio de natureza objetiva e o motivo torpe de natureza subjetiva, não há
óbice para que no caso concreto coexistam, devendo o plenário do júri decidir pelas suas existências. (...) (Acórdão 1168578, 20181410007167RSE, Relator: DEMETRIUS GOMES CAVALCANTI, 3ª
TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 25/4/2019, publicado no DJE: 8/5/2019. Pág.: 395/406)
(Grifo nosso)
Em que pese não tenha sido motivo de insurgência, ainda sim verifica-se que a qualificadora do meio cruel também ficou demonstrada nos autos, a qual, segundo descrito na denúncia (ID 26663448 - Pág. 1-2), foi “consistente na asfixia por constrição cervical (estrangulamento), praticada com a utilização de instrumento flexível”, o que foi confirmado pelo laudo de exame de corpo de delito nº 10495/21 – cadavérico (ID 26663449 - Pág. 1-15), que concluiu pela “Morte por asfixia. Constrição cervical.
Estrangulamento”.
Em não havendo improcedência manifesta das qualificadoras narradas na denúncia, a sua apreciação deve ficar a cargo do Conselho de Sentença.
Colho as ementas a seguir:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. LEGÍTIMA
DEFESA. DESCLASSIFICAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA CABAL. RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. QUALIFICADORA AFASTADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (...) 2. As qualificadoras do homicídio, em sede de decisão de pronúncia, só podem ser afastadas em caso de manifesta improcedência ou descabimento. (...) (Acórdão 1306949, 00046685520188070020,
Relator: CRUZ MACEDO, 1ª Turma Criminal, data de julgamento: 3/12/2020, publicado no DJE:
18/12/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada)
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. HOMICÍDIO
QUALIFICADO E FURTO SIMPLES. PEDIDO DE DESPRONÚNCIA INVIÁVEL. PRESENÇA DE PROVAS DA MATERIALIDADE E DE INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA DOS CRIMES.
AFASTAMENTO DA QUALIFICADORA DO EMPREGO DE MEIO CRUEL. INCABÍVEL.
PRESENÇA DE ELEMENTOS INDICIÁRIOS MÍNIMOS. MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA NÃO
VERIFICADA. SUBMISSÃO AO CONSELHO DE SENTENÇA. RECURSOS DESPROVIDOS. (...) 2. De acordo com o princípio do juiz natural, somente é cabível a exclusão das qualificadoras da
decisão de pronúncia, quando manifestamente improcedentes ou totalmente dissonantes do conjunto probatório, porquanto a sua configuração deve ser aferida pelo Conselho de Sentença, que é
soberano para o julgamento de crimes dolosos contra a vida. 3. É pacífico o entendimento no sentido de que o decote de qualificadoras por ocasião da decisão de pronúncia só estará autorizado quando forem manifestamente improcedentes, isto é, quando completamente destituídas de amparo nos
elementos cognitivos dos autos, o que não se verifica na espécie. (...) (Acórdão 1307303,
00044229820188070007, Relator: DEMETRIUS GOMES CAVALCANTI, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 3/12/2020, publicado no PJe: 12/12/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada)
Com essas considerações, conheço do recurso em sentido estrito e NEGO-LHE PROVIMENTO .
Com o relator
DECISÃO
CONHECIDO. IMPROVIDO. UNÂNIME.