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16 de Abril de 2024
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    Reintegração familiar ou adoção: alternativas e desafios nas instituições de acolhimento

    As crianças e os adolescentes que hoje conseguem refazer sua vida por meio da adoção um dia engrossaram estatísticas de meninos e meninas que vivenciaram todo tipo de negligência, violência e abandono por parte da família biológica ou extensa. Para protegê-los, o Estado, amparado por decisão judicial, os acomodou em instituições de acolhimento até que fossem adotados, devido à total impossibilidade de convivência com a família de origem.

    Por força do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), torna-se imperioso o acolhimento institucional, como medida protetiva excepcional e provisória, nos casos de ameaça ou violação de direitos em que foram esgotadas as outras possibilidades de proteção da criança ou do adolescente. Nesta segunda matéria da série “Os vários olhares sobre adoção”, o foco são as questões que envolvem a institucionalização infantojuvenil.

    Pertencer a uma família e ser amado por ela é tão importante para o desenvolvimento de uma pessoa que a Constituição, no artigo 227, e o ECA, nos artigos e 19, sacramentaram o direito da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária como fundamental e prioridade absoluta, assim como os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, ao respeito, entre outros.

    Nesse sentido, colocar uma criança ou adolescente em uma família substituta pela adoção, quando impossibilitada a sua permanência na família biológica, é entregar luz, esperança, carinho e cuidado a uma pessoa que vivenciou, ao longo de sua história, situações de negligência, abandono e violência. A adoção vem ressignificar esse passado com a acolhida, o afeto e o sentimento de pertencimento a um lar.

    A psicóloga Aline de Sousa, da entidade de acolhimento Lar de São José, em Ceilândia/DF, sabe bem o que é conviver com crianças e adolescentes que sofreram todo tipo de desrespeito aos seus direitos. Há dez anos na instituição, ela conta que muitos meninos desejam sair rapidamente dali para cuidar da família que não cuidou deles. Eles sofrem com o distanciamento dos parentes e com a incerteza quanto ao futuro.

    “Hoje há na entidade 74 acolhidos, com faixa etária entre 2 e 18 anos. Assim que chegam, suprimos suas necessidades de vestuário, alimentação e saúde, e também emocionais. Depois explicamos o porquê de estarem aqui e os esforços que envidaremos para que retornem à família de origem, desde que se resolva a situação que os levou ao acolhimento”, diz.

    Aline cita o caso de um grupo de oito irmãos, com idades entre 1 ano e 9 meses e 17 anos, que está sendo acompanhado pela instituição. Eles chegaram ao Lar de São José com nítidas características de vulnerabilidade e negligência. Estavam sujos e vestidos apenas com peças íntimas e camisetas de adulto. “Pelos contatos que fizemos com a genitora e pelos relatórios do Conselho Tutelar, a mãe está vinculada afetivamente aos filhos, mas parece ser portadora de algum transtorno mental que a impede de ficar com eles. Vamos fazer os estudos para entender melhor a situação e dar os encaminhamentos necessários ao bem-estar desses meninos”, conta Aline.

    Ela afirma que a tentativa de reintegração familiar é a primeira providência tomada pela equipe após o acolhimento institucional, como preconiza o ECA – artigo 100, inciso X. A criança e o adolescente têm o direito de permanecer na família biológica. Para isso, são realizados estudos psicossociais a fim de avaliar a possibilidade desse retorno e de um trabalho com a rede de atendimento para ajudar a família a solucionar suas dificuldades. “Nosso trabalho é focado no empoderamento das famílias com vistas à reintegração”, ressalta.

    Segundo Aline, muitas vezes, a família está vinculada aos filhos. Há afeto e a mãe ou alguém do círculo familiar costuma visitar as crianças na entidade com frequência. “Contudo, uma complexa situação de doença mental, drogadição ou desemprego, por exemplo, dificulta ou impede o dever parental de amor, cuidado e proteção. Nesses casos, é papel da instituição, do governo e da Justiça realizar um trabalho em rede para ajudar essa família a tentar solucionar suas limitações”, explica.

    Também integrante da equipe psicossocial do Lar de São José há sete anos, a assistente social Ana Lúcia Aparecida Antunes compactua com o entendimento de que a reintegração deve ser a prioridade. “A primeira coisa que falo às crianças e aos adolescentes quando chegam ao acolhimento é que já estamos trabalhando o seu retorno para casa. Eles acham que imediatamente serão cadastrados para adoção. Procuro esclarecer que isso não é verdade e que, primeiramente, investiremos na sua reintegração familiar. O cadastramento para adoção é uma possibilidade que pode vir ou não”, pondera.

    A assistente social explica, no entanto, que nem sempre essa reintegração é exitosa ou possível. Quando a impossibilidade do retorno à família é percebida pelos diversos atores – rede de atendimento e proteção, serviço de acolhimento, Justiça e, às vezes, pela própria família –, a equipe psicossocial sugere, por meio de relatórios, que haja a destituição do poder familiar ou que se intensifiquem ações com vistas à autonomia do acolhido.

    ________________________________

    PRINCIPAIS CAUSAS QUE IMPEDEM A REINTEGRAÇÃO FAMILIAR
    • Falta de vinculação da família à criança ou ao adolescente acolhido.
    • Falta de adesão da família às políticas públicas necessárias e sugeridas.
    • Falha do Estado no sentido de prover serviços públicos com vistas a solucionar as dificuldades da família.
    • Situação crônica e reiterada de abandono, negligência ou violência (física, sexual ou moral).

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    A equipe psicossocial diz ter um olhar bem cuidadoso quanto à questão do tempo de acolhimento para que as crianças não sejam prejudicadas. O tempo razoável à análise da situação da família, segundo as técnicas, é de três meses para fazer as investidas necessárias e de oito meses para fechar o convencimento, juntamente com as demais equipes psicossociais e jurídicas, em relação ao retorno à família biológica, ao cadastramento para adoção ou ao fortalecimento da autonomia do acolhido. “A partir do segundo ano de acolhimento, o ideal é que essas crianças já tenham tido o poder familiar destituído pelo juiz e que estejam sendo preparadas para a possibilidade de adoção”, considera Aline.

    A lei diz que o tempo máximo de acolhimento institucional de uma criança ou adolescente é de dois anos. De acordo com Aline, uma das razões que dificulta o respeito a esse prazo legal é a insistência em se investir na recuperação da família. “Na ânsia de se continuar investindo na família biológica ou extensa, diante das percepções das equipes psicossociais ou jurídicas, o tempo passa para a criança e ela sai do perfil desejado pelas famílias habilitadas para adoção”, diz.

    Outra justificativa para o excesso de tempo de acolhimento é a faixa etária com que os meninos e as meninas ingressam na entidade. Quando institucionalizados na adolescência, já estão fora do perfil aceito pelas famílias do cadastro de adoção. Dessa forma, se não são reinseridos na família, dificilmente serão adotados.

    Tanto a psicóloga quanto a assistente social explicam que, apesar de a reintegração ser a prioridade com base na lei, a temática adoção e autonomia acompanha todo o desenrolar do acolhimento institucional. Por serem protagonistas de suas vidas, os meninos e as meninas são, desde a sua chegada, informados do seu processo e das possibilidades que se vislumbram para eles. São esclarecidos do que está acontecendo no âmbito jurídico e afetivo. “A maioria é pré-adolescente ou adolescente e já tem entendimento sobre o que se passa. Deixamos claro que o desligamento da medida de acolhimento ou a ida para casa acontecerá um dia, quer seja pelo retorno à família biológica, quer seja pela adoção ou pela maioridade”, relata Aline.

    Quando a reintegração não é possível

    Nem sempre a reintegração familiar é alcançada com sucesso ou é possível para muitos dos meninos acolhidos. Quando isso acontece, a destituição do poder familiar é uma possibilidade que pode vir com vistas à adoção. Nesse caso, planta-se uma sementinha sobre a chance de uma nova família. Mas esse caminhar, que contempla o luto em relação à família biológica e a abertura para uma família substituta, muitas vezes é permeado de sofrimento e dor pelo distanciamento da família de origem. “Procuramos trabalhar esses sentimentos com conversas e sessões de terapia por meio de parcerias psicossociais para atendimento na rede de apoio”, afirma Aline.

    Nesse contexto, as profissionais do Lar de São José entendem ser importante falar com eles sobre abandono, mas sem denegrir a imagem dos seus genitores, considerando que, embora os pais biológicos não tenham sido os melhores do mundo, eles fizeram o melhor que conseguiram. “Alguns desenvolvem o sentimento de compaixão para com os pais; outros não. É preciso juntar os cacos e dar nomes aos sentimentos para que eles possam exorcizá-los e, de alguma forma, fazer com que se sintam melhor”, explica a psicóloga da entidade.

    Além do luto em relação à família biológica, a carência afetiva é uma realidade dos acolhidos. Aline e Ana Lúcia dizem que às vezes ela é tão grande que eles se mostram carentes até mesmo de tomar uma bronca. “Aqui estamos sempre disponíveis para tudo. Já chorei junto, já briguei junto. É a vida real que nos impele a ter disponibilidade afetiva e empatia para com esses meninos. É preciso estar disponível o tempo todo para conversas, limites e também para o beijo e o abraço”, relatam as profissionais.

    Esse caminhar, único e singular para cada menina e menino institucionalizado, muitas vezes tem um final surpreendente. Exemplo disso é um bem-sucedido caso de adoção internacional que movimentou a entidade nos últimos anos. Dois irmãos de 4 e 8 anos, acolhidos juntamente com outros dois irmãos adolescentes por situação de negligência, conseguiram ser adotados por um casal italiano. A mãe biológica, apesar de se mostrar presente e visitar os filhos, não dava conta deles fora dali. Durante o acolhimento, os dois maiores evadiram e os menores ficaram na entidade até serem adotados.

    O garoto de 8 anos desejava a adoção porque acompanhou a felicidade de um colega que também vivenciou uma adoção internacional. Apesar de vislumbrar o mesmo destino, o menino tinha o sentimento de “traição à mãe” ao almejar uma nova família. Ele se preocupava em não abandonar essa mãe e, para isso, o suporte psicossocial da instituição foi fundamental para ressignificar esse sentimento e fazer o luto. “Era preciso que ele entendesse que a genitora, apesar de amá-lo, não reunia condições para cuidar dos filhos. O menino tinha o direito de ter uma nova família”, sustenta a psicóloga.

    Após esse trabalho, que incluiu sessões de terapia e Constelação Familiar, os dois irmãos, que haviam passado por uma frustrada adoção nacional, foram adotados e começaram uma nova vida na Itália. “Apesar de o serviço de acolhimento não ser o melhor lugar do mundo, eles conhecem aqui o que é ser cuidado e protegido minimamente e acabam desejando isso. Falamos com eles que ser amado por uma família é um direito e que devem buscar isso”, relata a psicóloga Aline. Nos último anos, foram realizadas cerca de 20 adoções nacionais e 10 internacionais no Lar de São José.

    A história de autonomia de Geiziane

    Diante da impossibilidade da adoção, trabalhar a autonomia das crianças e dos adolescentes institucionalizados é imperioso para que eles consigam voar sozinhos quando a maioridade chegar. Questões como qualificação acadêmica e profissionalização são levadas a sério para que tenham as mínimas condições de enfrentar a realidade que se aproxima após a saída da entidade.

    Por força do ECA, o acolhimento institucional encerra-se aos 18 anos e, nesse contexto, estabelecer parcerias com instituições visando à profissionalização e à qualificação acadêmica desses jovens é imprescindível.

    Geiziane Alves Ferreira sabe bem o que é ser ajudada pelo serviço de acolhimento e pela Rede Solidária Anjos do Amanhã, programa de voluntariado da Vara da Infância e da Juventude do DF (VIJ/DF). Em abril do ano passado, ela conseguiu, por meio da Rede Solidária, uma vaga de estágio na Vara de Execução Fiscal do DF (VEF) e passou a ter novas perspectivas quanto ao seu futuro. Além do estágio, ela diz ter sido apoiada pela entidade de acolhimento para dar seguimento ao ensino médio, que ela conclui em dezembro.

    Adriana Lara de Brêtas Pereira, servidora da Rede Solidária e responsável pela seleção dos adolescentes para o estágio, diz que, durante o processo, há o acompanhamento direto dos jovens em reuniões periódicas, orientações e atendimentos individuais. O objetivo é levantar reflexões para os adolescentes e prepará-los para o rumo profissional – considerando que o estágio é temporário. “Existe uma preocupação com a formação geral dos jovens, tanto do lado profissional quanto do pessoal. Por isso, são trabalhados também com os estagiários temas como a administração de finanças pessoais e questões de relacionamentos interpessoais”, afirma Adriana.

    Apesar de a instituição de acolhimento não ser o lugar ideal para uma criança ou adolescente crescer, Geiziane diz que estar na entidade lhe trouxe amadurecimento e uma melhor compreensão das relações familiares. Por conta dessa experiência, passou a valorizar ainda mais as oportunidades, como o estágio que conseguiu e o apoio que teve para concluir os estudos. Desde a maioridade, que alcançou no último dia 23 de maio, escreve sua própria história na companhia do seu companheiro, Ismael, que também morava no serviço de acolhimento e agora divide com ela uma casinha alugada em Taguatinga/DF.

    Eles foram morar juntos, após quase dois anos de namoro, porque tiveram o apoio da entidade na montagem do novo lar e também no aconselhamento para vivenciar essa nova fase. “A gente recebeu muito apoio da entidade. Eles nos ajudaram com itens para a casa, com informações para conseguir o auxílio-aluguel e até mesmo com um Chá de Casa Nova”, comemora a jovem agradecida.

    Acolhida institucionalmente aos 15 anos, Geiziane conta que a adoção nunca passou pela sua cabeça. Suas duas irmãs costumavam visitá-la todos os sábados na companhia de seu padrasto, que ela chama de pai. Embora não tenha contato pessoal com a mãe desde o acolhimento, a jovem diz que, aos poucos, a relação entre elas vai se restabelecendo, mesmo de longe. “No Dia das Mães, eu mandei de presente para ela um kit com sabonetes e um urso de pelúcia. Meu pai disse que ela gostou e que, toda noite, dorme com o ursinho”, conta.

    Sonhos

    Para o futuro, Geiziane pretende ingressar na Aeronáutica ou cursar Serviço Social, inspirada na equipe técnica da instituição de acolhimento na qual viveu e que, segundo ela, fez e faz um trabalho de excelência. “Quero fazer o bem e ajudar as pessoas assim como me ajudaram”, diz.

    Ismael também tem suas metas para o futuro. Ele pretende cursar a 7ª e a 8ª séries ainda este ano, por meio da EJA – Educação de Jovens e Adultos, com o apoio financeiro de uma madrinha. A partir daí o céu é o limite. “Tenho o sonho de fazer Mecatrônica. Vou terminar o ensino fundamental e o médio para buscar isso. Gosto muito de informática e de tudo relacionado a máquinas e robôs”, relata.

    Ismael ainda não está trabalhando, mas espera conseguir oportunidades de trabalho assim que obtiver o Certificado de Reservista, documento exigido por empresas para fins de contratação. Até lá, o casal vai pagar as contas com o valor da bolsa do estágio de Geiziane, que se encerra em dezembro, e com a ajuda do auxílio-aluguel.

    Ismael completou 18 anos em janeiro deste ano, mas pôde permanecer no serviço de acolhimento por mais seis meses, até se unir à Geiziane, devido a um acordo com a entidade, que levou em conta o seu bom comportamento e o desejo de superar frustrações e construir um novo futuro.

    Série "Os vários olhares sobre adoção"

    Clique no título para ler a primeira matéria da série:

    Adoção internacional garante o direito de mais uma criança à convivência familiar

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